Transporte individual, problema para todos
Há algo de errado no modo em que pensamos o transporte público. Basta observar os congestionamentos ao final do dia em uma grande metrópole: carros vazios, ônibus lotados e espaço limitado ao avanço de qualquer um deles. Os malefícios causados a nossa saúde, os acidentes recorrentes e a necessidade de sermos cada vez mais produtivos apontam forte necessidade de soluções alternativas. Estes efeitos não são desejados por ninguém, mas são conseqüência de decisões equivocadas do setor público e, entre outros aspectos da cultura brasileira, a preponderância de um pensamento imediatista.
Os engarrafamentos vistos nas grandes cidades brasileiras são, em sua essência, conseqüência de uma mentalidade ortodoxa dos nossos governantes. Há tempos, já conhecemos as motivações que impedem o fluxo nas ruas. Em tempos remotos, até mesmo charretes encontravam dificuldade de circulação em horários de pico. No entanto, desafogar o trânsito foi sempre uma desculpa para aumentar a circulação de capital na economia. Favoreciam-se diretrizes traçadas para o transporte individual. Pouca coisa mudou. O crescimento horizontal das cidades é suportado pela venda de automóveis particulares. Para melhorar o escoamento, pensa-se na construção de novas vias ao invés de aumentar a frota ou modais públicos. A taxação sobre a circulação restringe-se apenas às vias expressas. Esquece-se do alto valor da livre circulação nos centros urbanos. Investimentos estruturais para o transporte público, como a construção de faixas seletivas, têm êxito, mas sua disseminação é morosa em comparação à urgência do problema.
A fabricação de veículos individuais para alimentar essa preferência acabou gerando uma relação de dependência. Em momentos de crise, como visto no cenário mundial em 2008, fez-se necessárias ações protecionistas ao setor automobilístico. Nessa situação de crise, reduziu-se o IPI, foi dada maior facilidade ao crédito, impulsiou-se as vendas e garantiu-se empregabilidade a metalúrgicos. Preservou-se ainda a imagem política. Assim, foi criada uma falsa sensação à população de aumento do poder de compra e ascensão social.
Todas essas ações são suportadas por uma cultura perfeitamente compatível. A aquisição do automóvel próprio é tanto um sonho quanto um símbolo de status. Modelo e fabricante identificam o perfil do proprietário e expressam seu valor como cidadão. Representamos, nas ruas, a importância da aparência, a diferenciação entre os indivíduos e outras nuances herdadas de uma cultura colonial.
A priorização do transporte individual gera um alto custo à sociedade. Renegar esta conta e não medir os prejuízos traz conseqüências impagáveis ao país. Atuar diretamente nos efeitos do problema do transporte, vendendo mais carros e construindo novas vias, já provou ser uma estratégia fadada ao fracasso. Poderemos mudar nosso rumo adotando um novo foco político capaz de transpor o imediatismo. Reestruturar nossos modelos urbanos, descentralizar nossa economia, taxar a circulação de carros nos grandes centros, investir nos meios de locomoção pública e adequar vias para melhor circulação de pedestres e bicicletas são exemplos de soluções adotadas em alguns lugares e comprovadas como eficazes. Não há momento melhor para por em prática essas ações se não o que vivemos agora: transição de lideranças políticas. Agindo agora, teremos tempo para sentir os benefícios de se investir no coletivo e, com sorte, mudar aspectos arraigados em nossa cultura.